A incerteza e a ambiguidade como armas políticas

Vivemos tempos em que a incerteza deixou de ser uma consequência das circunstâncias para se tornar um instrumento deliberado de poder. O uso calculado da imprevisibilidade serve para confundir a opinião pública, desorganizar adversários, manipular cenários e ampliar a margem de manobra dos atores políticos. Os exemplos são recorrentes na história e revelam tanto a eficácia quanto os perigos dessa estratégia.

A política brasileira há muito compreende o valor estratégico da incerteza. Uma anedota clássica da política mineira ilustra perfeitamente essa dinâmica: dois políticos se encontram na estação ferroviária de Belo Horizonte. Um pergunta ao outro: “Para onde você vai?”. O segundo responde: “Vou para Barbacena”. O primeiro então pensa consigo mesmo: “Ele está me dizendo que vai para Barbacena para que eu pense que ele está mentindo e acredite que vai para outro lugar. Mas como ele sabe que eu vou pensar assim, ele está me dizendo a verdade justamente para me confundir. Portanto, ele vai mesmo para Barbacena… ou será que não?”.

Essa pequena história captura a essência da incerteza como instrumento político: a dúvida e a ambiguidade deliberadamente cultivadas sobre intenções reais criam múltiplas camadas de interpretação, dificultando que adversários antecipem movimentos e formulem respostas adequadas. Na tradição política mineira, essa ambiguidade calculada foi consagrada ao nível de arte, permitindo que gerações de políticos navegassem entre diferentes forças e interesses sem comprometimentos definitivos prematuros.

A estratégia mineira da ambiguidade não era mera indecisão, mas sofisticada técnica de sobrevivência política. Em um estado historicamente dividido entre diversas oligarquias regionais, a capacidade de manter todas as portas abertas simultaneamente transformou-se em requisito para longevidade política. Figuras como Tancredo Neves personificaram essa habilidade: conseguia dialogar com militares e oposicionistas, com conservadores e progressistas, mantendo todos em permanente incerteza sobre suas verdadeiras alianças até o momento em que precisava revelar suas cartas.

Essa tradição da estratégia política encontra paralelos em diversos contextos internacionais, onde a incerteza se manifesta em escalas e formas variadas. Nos tempos atuais, Donald Trump revolucionou a diplomacia americana ao transformar a imprevisibilidade em ferramenta central de negociação. Lança tarifas sem aviso, ameaça retirar os EUA de organizações internacionais e desestabiliza alianças consolidadas. Com a China, impôs e suspendeu tarifas repetidamente, criando imprevisibilidade que forçou Pequim a negociar, embora sem resolver questões estruturais. A estratégia se inspirava conscientemente na madman theory de Richard Nixon, modernizada para a era das redes sociais.

Vale lembrar que a madman theory (teoria do “louco”) é uma estratégia de poder — associada a Richard Nixon e Henry Kissinger — em que o líder cultiva deliberadamente uma imagem de imprevisibilidade e disposição para medidas extremas, elevando a percepção de risco do adversário para arrancar concessões sem precisar usá-las de fato.

Jair Bolsonaro tentou replicar elementos dessa abordagem no Brasil, mas em contexto institucional distinto. Questionou sistematicamente a confiabilidade das urnas eletrônicas, atacou o Supremo Tribunal Federal alternando entre declarações de respeito constitucional e confrontos diretos, e utilizou lives semanais para fazer declarações polêmicas depois relativizadas por porta-vozes. O ponto crítico ocorreu após as eleições de 2022: seu silêncio calculado alimentou expectativas golpistas que culminaram nos ataques de 8 de janeiro de 2023, demonstrando como a estratégia pode escapar ao controle quando aplicada em democracias em consolidação.

No século passado, Benito Mussolini foi um dos pioneiros no uso sistemático da ambiguidade entre violência e apelos respeitosos às instituições. Nos anos 1920, alternava entre ataques paramilitares dos camisas negras e discursos que prometiam ordem e respeito às instituições. Essa dualidade calculada permitiu-lhe ascender ao poder mantendo uma fachada de legalidade enquanto destruía sistematicamente a oposição. Mussolini testava constantemente os limites: ordenava espancamentos de adversários, depois se distanciava publicamente da violência; ameaçava golpes, depois negociava com o establishment. A Marcha sobre Roma em 1922 exemplifica essa estratégia — uma demonstração de força militar que foi simultaneamente uma negociação política, deixando o rei Vítor Emanuel III em incerteza sobre as consequências de resistir.

Joseph Stalin levou essa lógica ao extremo nos anos 1930. Os Processos de Moscou criaram terror com a imprevisibilidade absoluta: ninguém, nem os mais próximos ao poder, sabia quando seria alvo da próxima purga. Diferentemente dos casos contemporâneos, Stalin operava em sistema totalitário onde a incerteza se voltava principalmente contra seus próprios subordinados, não como ferramenta de negociação externa, mas como base de controle interno.

Vladimir Putin modernizou essas táticas para o contexto atual. Durante a guerra na Ucrânia, faz sucessivas ameaças de uso nuclear sem cruzar a linha da ação concreta. Essa ambiguidade visa desincentivar intervenções ocidentais mais incisivas, mantendo aliados da Ucrânia em alerta constante. Enquanto Stalin utilizava a imprevisibilidade para controle doméstico, Putin a emprega para projeção internacional, usando o arsenal nuclear russo como fonte permanente de dúvida estratégica.

Israel representa o caso mais sofisticado de incerteza institucionalizada. Desde os anos 1960, mantém política de “opacidade nuclear” — nunca confirmou nem negou oficialmente a posse de armas atômicas. Essa postura permite obter benefícios dissuasórios sem sofrer sanções formais impostas a países que declaram abertamente suas capacidades. A ambiguidade desestimula ataques diretos, mas não provoca corridas armamentistas declaradas. Israel consegue manter essa política há décadas porque opera dentro de sistema democrático com instituições sólidas e sofisticação estratégica desenvolvida ao longo de gerações.

A república teocrática do Irã também aplica a incerteza e a ambiguidade em seus movimentos. Desde 1979, utiliza sistematicamente a dúvida sobre suas capacidades nucleares para extrair concessões internacionais. Teerã opera nos limites dos acordos: enriquece urânio acima dos patamares estabelecidos, depois reduz parcialmente; impede inspeções plenas, depois permite acesso limitado. Durante as negociações do Acordo Nuclear de 2015, alternava gestos conciliatórios e provocações. Essa política permite ao regime manter relevância desproporcional ao seu poder econômico real.

Durante a Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética institucionalizaram a imprevisibilidade pela Doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD). Ambas as superpotências mantinham arsenais nucleares capazes de destruir completamente uma à outra. A genialidade perversa do sistema residia precisamente na dúvida: nenhum lado podia calcular com precisão como o outro reagiria a diferentes níveis de provocação, forçando ambos à contenção.

A análise desses casos revela que o sucesso da incerteza como instrumento político depende fundamentalmente da capacidade de manter controle rigoroso sobre seus efeitos e de operar dentro de marcos institucionais que permitam calibragem precisa. Israel e Irã, apesar de sistemas políticos opostos, mantêm estruturas estatais centralizadas que permitem coordenação estratégica eficaz. A tradição mineira de ambiguidade funcionava precisamente porque operava dentro de sistema político relativamente estável, com regras não escritas, mas amplamente compreendidas.

Por outro lado, quando aplicada em contextos institucionais frágeis ou por operadores com menor sofisticação, a estratégia tende a escapar ao controle e produzir instabilidade sistêmica. Os casos históricos ilustram esse risco: a ambiguidade entre violência e o respeito às instituições pode corroer irreversivelmente as bases democráticas quando não há anticorpos institucionais suficientes para contê-la.

A incerteza continuará sendo utilizada como recurso político no século XXI — a era da informação instantânea apenas amplifica seu potencial. Contudo, sua transformação em método sistemático de governo representa sempre risco calculado que nem sempre é bem calculado. A maestria nessa estratégia exige não apenas audácia política, mas sobretudo sofisticação institucional e controle sobre as consequências.

A política democrática eficaz é aquela que ousa sem destruir, que confronta sem chantagear, e que negocia com firmeza dentro dos limites do jogo institucional. A incerteza pode ser arma poderosa, mas permanece volátil — e, como todo explosivo, exige manuseio por especialistas que compreendem profundamente suas consequências.

Para democracias consolidadas, o desafio está em desenvolver anticorpos que permitam absorver táticas desestabilizadoras sem comprometer o funcionamento do sistema político. A prudência sugere extrema cautela com experimentos que podem facilmente escapar ao controle das instituições. Porém, nos tempos de hoje, o uso intensivo da incerteza e da ambiguidade coloca sistemas políticos em permanente estado de alerta.

Fonte: Revista Conjuntura Econômica | Outubro 2025

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